Ato em Porto Alegre denuncia prisões de ativistas da Flotilha Internacional e cobra ação do governo brasileiro

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Durante o ato em solidariedade à Flotilha Internacional, realizado neste domingo (5), no Parque da Redenção, em Porto Alegre, integrantes de diferentes movimentos e coletivos denunciaram as prisões de ativistas que tentaram romper o bloqueio israelense a Gaza. A iniciativa, que reuniu representantes de partidos, sindicatos e organizações sociais, expressou apoio ao povo palestino e cobrou medidas concretas do governo brasileiro diante da crise humanitária. A mobilização integra uma série de atos de solidariedade que vêm ocorrendo em diversas cidades do mundo.

Com uma população estimada em pouco mais de 2 milhões de pessoas, Gaza vem padecendo, em decorrência das ações de Israel, que sabotam ajuda humanitária como as tentadas pela flotilha Global Sumud na semana passada, em que ativistas foram sequestrados.

“Mais de 60 mil mortos confirmados, a maioria mulheres e crianças. Mais de 90% da infraestrutura de Gaza, do tamanho de Porto Alegre, foi devastada pelas bombas de Israel”, destacou o militante do movimento revolucionário de trabalhadores, Guilherme Kranz.

Integrante da Frente Gaúcha de Solidariedade ao Povo Palestino, Cláudia dos Santos afirmou que o episódio configura crime de guerra. “O Estado ilegal de Israel capturou em águas internacionais, o que é um crime de guerra, 437 tripulantes da flotilha Global Sumud que navegavam para entregar ajuda humanitária, tornando o bloqueio outro crime”, destacou. “Eles interromperam a entrega de alimentos, medicamentos e próteses para milhares de crianças que perderam pernas e braços e não têm acesso nem à medicação para dor.”

Ela relatou casos de tortura, humilhações e negação de medicamentos, destacando que entre os presos está o brasileiro Thiago Ávila, que iniciou greve de fome e de sede. “É necessário que a gente se mobilize para que os tripulantes sejam libertados e os Estados do mundo ajam. Nada está sendo feito para interromper o genocídio. Essa era uma ação concreta de entrega de ajuda humanitária feita por civis, e foi brutalmente interrompida.”

“É necessário que a gente se mobilize para que os tripulantes sejam libertados e os Estados do mundo ajam”, enfatiza Santos – Foto: Fabiano Zalazar

Crítica ao governo brasileiro e às instituições internacionais

Santos também criticou a postura do governo brasileiro, que, segundo ela, manteve acordos com empresas israelenses mesmo durante o ataque à flotilha. “Enquanto a Global Sumud era atacada, o governo brasileiro firmava dois novos acordos entre a Força Aérea Brasileira e a Elbit Systems. Nosso ato também exige embargo militar e o cancelamento do acordo de livre comércio Brasil-Israel. Palavras e moções de repúdio não bastam, o Brasil precisa cumprir as convenções internacionais de combate ao genocídio e ao apartheid”, defendeu.

Ela também denunciou a inação de instituições internacionais. “As decisões da Corte Internacional de Justiça não foram colocadas em prática. Até mesmo navios italianos e espanhóis que prometeram proteger os tripulantes da flotilha chantagearam os ativistas para que entregassem a carga ao exército israelense, o que foi recusado. O mar é de livre navegação civil e o bloqueio é ilegal.”

“Precisamos que os próximos atos sejam ainda maiores, para fazer ecoar a voz da Palestina. Não em nosso nome o Brasil envia petróleo ou vende aço para Israel. As riquezas produzidas pelos trabalhadores brasileiros não podem abastecer essa máquina de guerra”, ressaltou Kranz.

“Proteção e voz aos tripulantes”

O brasileiro de origem palestina Nader Baja, integrante da Frente Gaúcha de Solidariedade ao Povo Palestino, destacou que a coalizão que organiza a flotilha reúne partidos políticos, sindicatos e ativistas. “Hoje estamos aqui para pedir proteção, cuidado, carinho e voz para os membros da Flotilha Internacional, mulheres e homens de coragem que enfrentaram o mar Mediterrâneo para levar comida e remédios a crianças e mulheres famintas em Gaza.”

Segundo ele, o bloqueio e a prisão dos integrantes da flotilha, de 44 países, seguem a postura histórica de repressão de Israel. “Alguns foram deportados para a Turquia, mas outros ainda estão presos no sul de Israel. Entre eles há 13 brasileiros. Pedimos ao governo brasileiro que tome medidas concretas para proteger seus cidadãos e os demais membros da delegação internacional”, disse.

“Ocuparam nossas terras, mas não nossa esperança”

Baja lembrou que o Brasil apresentou uma queixa no Conselho de Direitos Humanos da ONU, em Genebra, apoiada por outros países, mas defendeu ações mais firmes. “Queremos a expulsão do embaixador israelense, o fechamento da embaixada de Israel no Brasil e o rompimento das relações diplomáticas, comerciais e acadêmicas.”

Ele denunciou ainda o assassinato de jornalistas em Gaza e o bloqueio à cobertura internacional. “Mais de 250 jornalistas foram assassinados. Israel proíbe a entrada de correspondentes estrangeiros. Quem mostra a realidade são os jornalistas de Gaza, que vivem sob bombardeios, fome e sede. Vocês, jornalistas brasileiros, também têm o dever de denunciar.”

Encerrando sua fala, expressou o desejo de ver o povo palestino livre. “Esperamos liberdade, independência e uma vida digna, como qualquer povo do mundo. Os palestinos foram expulsos de suas terras em 1948, mais de 500 aldeias foram destruídas e Israel foi criado no lugar da Palestina. Hoje, se olhar um mapa, a Palestina não existe geograficamente, mas existe na política, nas nossas mentes e na luta. Ocuparam nossas terras, mas não ocuparam nossa esperança.”

“Queremos o rompimento das relações diplomáticas, comerciais e acadêmicas”, frisa Baja – Foto: Marcelo Bischoff Rocha

Sindicatos reforçam solidariedade

A manifestação também contou com a presença de sindicatos e entidades de trabalhadores. O diretor do Sindicato dos Servidores da Justiça do RS (Sindjus-RS) Fabiano Zalazar destacou que o ato reuniu sindicatos, partidos e movimentos sociais em defesa da Palestina. “Essa é hoje a principal causa da humanidade, o auge da barbárie capitalista. Assim como os bloqueios em Cuba e Venezuela, o que acontece em Gaza é parte de um mesmo sistema de opressão. Nós, do movimento sindical, temos obrigação de estar presentes na defesa dos direitos humanos, porque o que ocorre lá é um extermínio”, afirmou.

Zalazar lembrou que entre os tripulantes estão as gaúchas Gabriela Tolotti e Lise Proença, além de Thiago Ávila. “Eles estão sofrendo todo tipo de violência do governo israelense. Precisamos que o governo Lula tome uma posição mais assertiva, como o presidente Petro, da Colômbia, tem feito. Não podemos seguir patrocinando indiretamente o genocídio. Há empresas em Porto Alegre que fornecem insumos para drones israelenses, e isso precisa acabar urgentemente.”

Neiva Lazzarotto, professora da rede estadual e dirigente do 39º Núcleo do Cpers Sindicato, ressaltou que a mobilização deve continuar. “Não podemos silenciar quando um povo está sendo massacrado. Esta já é a terceira vez que estamos nas ruas nesta semana. Precisamos pressionar o presidente Lula para garantir o retorno dos brasileiros presos pelo exército genocida de Israel e apoiar os mais de 400 ativistas que colocaram suas vidas em risco para romper o bloqueio a Gaza.”

Ela também criticou o papel dos Estados Unidos e defendeu a resistência palestina. “O genocida Trump fala em negociar a paz, mas é a paz dos cemitérios, a rendição do povo palestino. Nós queremos a paz com soberania, com o direito do povo palestino a seu território. Viva quem luta na Palestina.”

A mobilização integra uma série de atos de solidariedade que vêm ocorrendo em diversas cidades do mundo – Foto: Fabiana Reinholz

“Minha irmã não é terrorista”

“Nos últimos dias me vi com um sentimento de impotência, vendo minha irmã presa lá. Peço desculpa pela emoção”, disse Larissa Proença Severo, com a voz embargada, sobre a irmã que está entre os ativistas sequestrados por Israel. “Hoje faz quatro dias que estamos sem contato com ela, sem saber sobre seu bem-estar. As informações da embaixada são vagas, esquivas. Meu pai está aqui também, e estamos sofrendo muito. Mas vir aqui foi uma forma de reganhar nossa força, e cada um de vocês nos dá essa força.”

Lisiane Proença Severo, de 34 anos, é ativista, comunicadora popular e criadora de conteúdo. Ela integrava a Flotilha Internacional que partiu da Espanha no dia 31 de agosto com destino a Gaza.

“Vir aqui foi uma forma de resgatar nossa força, e cada um de vocês nos dá essa força”, desabafa Larissa Proença Severo – Foto: Santiago Rodrigues

Prisões e condições de detenção

“Ela já estava se preparando desde a semana anterior, dizendo que iria para a Espanha, mas ainda não sabia se embarcaria. Acabou embarcando e agora está há quatro dias sem contato. A embaixada apenas repete que estão bem, mas os advogados relatam o contrário: muitos estão sem comida adequada, sem acesso a água potável ou medicamentos, com direitos negados. Foram presos ilegalmente em águas internacionais. Mais de 80 participantes tiveram acesso a advogados negado, e não sabemos se minha irmã é uma dessas pessoas”, relatou Severo.

Segundo ela, a última comunicação com Lisiane foi por vídeo. “Ela tentou me ligar, eu não consegui atender. Depois mandou um vídeo me agradecendo por ajudar a editar seus vídeos para as redes. Também disse a uma amiga que estava forte e sorrindo acima de tudo, como sempre fez.”

Em meio à dor, Severo destacou o orgulho e a convicção da irmã. “Ontem foi aniversário dela, e pela primeira vez em 34 anos não comemoramos juntas. Mas tenho certeza de que ela está orgulhosa de onde está, lutando pelo que acredita. Estaria muito orgulhosa de ver que estamos aqui nos movimentando também, não só por ela, mas por todos os ativistas que tentam levar ajuda humanitária a um povo que sofre genocídio há muito tempo.”

Ela lembrou que, no dia da prisão, palestinos conseguiram pescar novamente após semanas de bloqueio. “Enquanto o exército prendia eles, o povo palestino pescou centenas de peixes. Isso mostra que as ações têm impacto, mesmo que não seja o que esperamos. Eles vão continuar lutando, cada vez maiores, para que o povo palestino possa ser livre.”

Nesta segunda-feira (6), a família divulgou uma Carta de Lisi, escrita de dentro da prisão em Israel: “Mãe, eu estou bem e forte. Fique bem e confie em mim.
Te amo. Pai, obrigada por tudo e fique bem. Eu estou bem e forte. Te amo. Lari, eu não me esqueci o porquê estou aqui. Estamos fortes e juntas. Te amo. Lisi Pelo fim do genocídio, pela liberdade de todos os povos.”

Militância e convicção

Severo também destacou o histórico de militância de Lisiane. “Ela já participou de várias ações ativistas, inclusive na Amazônia, com o projeto Amazônia de Pé, e também fez trabalho voluntário em Cuba. Não está lá por aventura, mas por convicção.”

A irmã pediu que o governo brasileiro e a comunidade internacional responsabilizem Israel. “Esperamos que toda a mobilização ao redor do mundo faça diferença, para que os governos rompam acordos comerciais com Israel e responsabilizem o Estado pelos crimes de guerra que está cometendo.”

Emocionada, encerrou citando uma frase que Lisiane costuma repetir: “Ela sempre diz que devemos organizar a nossa raiva e defender a nossa alegria. É isso que ela está fazendo lá. Ela comemorou o aniversário dela lá, e nós estamos aqui celebrando por ela também. Em Porto Alegre pode parecer pequeno, mas é uma continuação desse movimento global. Obrigada por estarem aqui. Minha irmã não é terrorista”. Severo estava acompanhada do pai, também bastante emocionado.

Estado de apartheid

Pedro*, de descendência palestina, participou do ato com a esposa e os dois filhos. “Ficamos muito felizes pela adesão do povo brasileiro, de pessoas que moram tão longe da Palestina e sentem com a gente. Morei lá, e aquilo é de fato um estado de apartheid, com todas as barbáries contra nosso povo, um povo originário. Meus avós e meu pai têm mais idade que a própria fundação do Estado de Israel.”

Nascido no Brasil, Pedro viveu sete anos na Palestina. “Moramos perto de Ramallah, na Cisjordânia. Não temos os mesmos direitos, apesar de sermos os donos daquela terra. Nossos direitos são subtraídos.”

Ele descreve a presença constante do exército israelense no território. “Imagina um exército bloqueando permanentemente as cidades, controlando entradas e saídas. Tudo é controlado pelo exército israelense, até mesmo na Cisjordânia, que eles chamam assim para dividir entre Cisjordânia e Faixa de Gaza. Essa é uma arma que eles utilizam para distanciar as pessoas e enfraquecer a resistência.”

Pedro também relatou mudanças no debate sobre a Palestina no Brasil. “Até governos de direita sempre foram a favor da causa palestina. Isso mudou agora, por razões que todos sabem. É assustador ver pessoas politizando uma causa de justiça. Há um lobby forte por trás dessa mudança.”

Cerca de 197 palestinos, incluindo 96 crianças, morreram de fome desde o início da guerra, de acordo com autoridades de Gaza – Foto: Santiago Rodrigues

O casal tem dois filhos. “A gente tenta passar pra eles a nossa história, a história que o meu pai me passou. Um deles já foi até lá, quando fomos visitar em 2017. Queremos manter esse vínculo e, sempre que possível, voltar. Eles já têm dentro deles a questão da Palestina”, afirma Pedro, casado há dez anos.

Os sete anos vividos em Ramallah foram decisivos para a formação pessoal e cultural dele. “Foi lá que eu formei meu caráter, porque eu era adolescente. Vivi parte da infância e da adolescência na Palestina, e foi uma experiência espetacular pra mim. Eu sou brasileiro, nascido aqui, mas carrego comigo toda a questão cultural do meu povo. Sou muito feliz por poder viver esses dois lados, e muito feliz quando vejo brasileiros ao nosso lado.”

Ao explicar o significado do lema “Palestina livre do rio ao mar”, Pedro diz: “Quer dizer toda a Palestina histórica libertada, porque a criação do Estado de Israel foi em cima de um povo que já existia ali. Existem tratados desde 1967 que ignoram isso, mas o que defendemos é o direito à Palestina anterior às fronteiras da guerra de 1967.” Para ele, o que ocorre hoje é inaceitável. “Crianças sendo mortas, civis indefesos. A paz só vai começar quando os palestinos tiverem seus direitos reconhecidos.”

De acordo o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, em julho deste ano, quase 12 mil crianças menores de cinco anos foram identificadas com desnutrição aguda em Gaza, o maior número mensal já registrado. Cerca de 197 palestinos, incluindo 96 crianças, morreram de fome desde o início da guerra, de acordo com autoridades de Gaza.

*Nome foi modificado para preservar a identidade.

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