A peça Bailei na Curvaum clássico do teatro gaúcho, continua a cativar o público e se prepara para completar 42 anos em cartaz em 2025. O espetáculo, sob a direção de Júlio Conte, pode ser visto nesta sexta-feira (21) e sábado (22), às 20h, e domingo (23), às 18h, no Teatro Simões Lopes Neto do Multipalco Eva Sopher (Rua Riachuelo 1080 – Centro Histórico, Porto Alegre).
O texto e roteiro final foram desenvolvidos por Júlio Conte em colaboração com Cláudia Accurso, Flávio Bicca Rocha, Hermes Mancilha, Lúcia Serpa, Márcia do Canto e Regina Goulart. A peça estreou em 1º de outubro de 1983 no Teatro do IPE, abrangendo a linha do tempo que vai do golpe militar de 1964 à abertura e o voto direto para presidente. Desde então, o texto tem sido montado em todo o Brasil e é adotado como material de estudo em diversas escolas nacionais.

Bailei na Curva narra a trajetória de sete crianças vizinhas na mesma rua, utilizando como pano de fundo a história contemporânea do Brasil. A peça desenha um quadro que é, simultaneamente, divertido e implacável. É divertido por capturar a pureza e a ingenuidade das personagens que enfrentam as transformações do final da infância, da adolescência e da juventude. Por outro lado, é implacável devido às consequências de um golpe militar que se refletem na vida adulta desses jovens.
A peça constrói um painel dos usos, costumes e pensamentos da sociedade brasileira na segunda metade do século 20. Cenas memoráveis detalham as brincadeiras de colégio, as matinês no cinema, as reuniões dançantes nas garagens e os namoros dentro do carro.
A releitura da montagem atual
Dirigida por Júlio Conte, que também esteve à frente das remontagens de 1994 e 2001, a montagem atual (com elenco incluindo Ana Paula Schneider, Catharina Conte, Eduardo Mendonça, Guilherme Barcelos, Laura Leão, Leonardo Barison, Manoela Wünderlich e Saulo Aquino) mantém o vigor dos momentos de descoberta e “admite uma releitura da história”.
Para garantir que o público mais jovem – que não vivenciou a época – compreenda o contexto, o cenário emocional é fornecido através da exibição de três videoclipes com imagens das décadas de 1960, 1970 e 1980. Essa ferramenta permite que o espectador tenha uma ideia do que foram os “anos de chumbo” e das “possibilidades que pelo menos duas gerações tiveram que inventar para sobreviver e não se perder por aí”.
Confira entrevista exclusiva com o diretor Júlio Conte.
Brasil de Fato RS: Como foi o processo de desenvolvimento e escrita para conseguir condensar a história contemporânea do Brasil – do golpe militar de 1964 à abertura e o voto direto – na trajetória dessas sete crianças vizinhas?
Júlio Conte: O processo de criação da peça partiu de um roteiro meu no qual tinha duas perguntas, como lidar com as próprias memórias num país sem memória e que esquece a si mesmo; a outra era sobre se o que aconteceu na nossa infância foi um golpe militar ou uma revolução. Visões dispares a serem elaboradas pela mente curiosa de crianças que recusavam espontaneamente a hipocrisia e o autoengano.

O trabalho de improvisadores evocava as memórias que estavam obscurecidas pelas camadas de opacidade dos nossos pais. Evocando a ingenuidade da criança interna, na intuição infantil, tratávamos de trazer à tona a denúncia de que alguma coisa estava errada, o rei estava nu. E assim, em cada segmento social representado nas cinco famílias que compõem a narrativa principal foi-se desenvolvendo o questionamento.
Bailei na Curva criou uma história que é a história de cada um e a história do Brasil e de países da América Latina
O desafio foi dar vida às crianças que se originaram da família do militar, do empresário, do trabalhador e da classe média. Cada ator, pela via do improviso, ofereceu um pedaço de sua vida. O roteiro ganhou corpo e eu consegui colocar uma dramaturgia dessas lembranças. Justamente esta dramaturgia que tornou o conjunto de memórias numa história de todos.
Nos anos 1980, no boom da criação coletiva, muitos trabalhos importantes ficaram datados pela falta de uma dramaturgia que transcendesse a particularidade. Bailei na Curva venceu este desafio, saiu da experiência particular para a universalidade, criando uma história que é a história de cada um e a história do Brasil e de países da América Latina.
A peça se propõe a desenhar um quadro que é, ao mesmo tempo, divertido e implacável. Como foi para equilibrar a pureza da infância e as cenas leves (como as aulas de educação sexual e os namoros no carro) com o peso dos anos de chumbo e os destinos trágicos?
Eu queria discutir o golpe militar sem um discurso saturado. Queria um texto aparentemente suave na superfície, mas gradativamente revelando camadas mais profundas da realidade. A leveza aparente desarmava as crenças e ideologias para a seguir penetrar na complexidade do Brasil e atingir os paradoxos que nos envolviam e ainda nos envolvem.
A peça poderia ser uma comédia de costumes, mas não é, atravessou a barreira da comédia e da ingenuidade para encontrar o peso e o trágico e na irreversibilidade reencontrar uma esperança.
A peça detalha usos, costumes e pensamentos da sociedade brasileira na segunda metade do século 20. Qual foi a sua principal fonte de inspiração ou memória pessoal ao retratar esses momentos culturais específicos que moldaram a juventude da época?
A memória é o motor da narrativa. O grupo mergulhou nas memórias, e depois, os mais de 40 atores que atuaram neste espetáculo nestes 42 anos, fizeram o mesmo, e cada ator deixou sua contribuição e sua singularidade. A posteriori o texto do eu dancei poderia ser pensado como aqueles textos no qual cada um que o lê acrescenta algo, formando um atravessando criativo.

Bailei na Curva completará 42 anos, sendo a peça mais longeva do estado. A que tu atribuis a longevidade da obra, que é adotada como material de estudo em escolas e montada em todo o Brasil?
Primeiro a dramaturgia onde se realizou uma narrativa, ágil e profunda. A aparente simplicidade da narrativa, espontânea, divertida e cheia de vida, humor, sexualidade abriu caminho para a entrada nas escolas e nos grupos de teatro.
O Bailei na Curva pode ser situada entre a última peça criada sob ditadura ou a primeira da redemocratização
O teatro é uma das melhores formas de aprender com a experiência devido a possibilidade de se identificar com personagens e com isso aprender a lidar com a vida. É a função da arte em geral e o teatro em particular, desde o século 5 antes da era atual.
Quais são os aspectos históricos ou emocionais que tu sentiste a necessidade de “reler” ou enfatizar para as novas gerações de público e atores?
A peça em 1983, quando da estreia, tinha no terceiro ato, uma vivencia ainda incerta do destino das personagens. Cabe lembrar que a abertura só ocorre a partir de 1985 e a campanha Diretas Já, que encaminha a redemocratização é posterior a estreia.
Ó Bailei na Curva pode ser situada entre a última peça criada sob ditadura ou a primeira da redemocratização. Com isso, quero dizer que o terço final da peça estava acontecendo tanto no palco quanto fora dele. Cabia colocar no palco aquilo que vivíamos na realidade.
O Brasil impediu que Bailei na Curva fosse uma peça histórica, pois insiste em torná-la atual
Com o passar dos anos e das apresentações foi acontecendo o que acontece quando se observa um fenômeno muitas vezes, começamos a extrair os padrões e compreender melhor o que estávamos fazendo. As verdades nunca se revelam de uma vez, e guardam seu caráter de transitoriedade, se renovam a cada leitura. Ampliam o entendimento.

A montagem atual utiliza três videoclipes para fornecer o background emocional das décadas de 1960, 1970 e 1980, especialmente para quem não vivenciou os anos de chumbo. Como essa adição tecnológica, não presente na produção original, altera a experiência do público e a interpretação dos atores em relação ao drama vivido pelos personagens?
A primeira encenação foi com sete cadeiras pretas e na caixa preta do palco. A vida e a circunstância eram oferecidas pela interpretação dos atores. A peça retratava o momento. Com o tempo foi contando uma história passada e agora o passado voltou a ser, infelizmente, atual.
O Brasil impediu que Bailei na Curva fosse uma peça histórica, pois insiste em torná-la atual. O uso de vídeo serve para contextualizar com imagens e situar no tempo espaço a narrativa. Muitas gerações já nasceram sob a democracia e não tinham ideia do que aconteceu naqueles anos. A imagens estão a serviço da narrativa.
A peça acompanha uma geração que encontra sua maturidade nos movimentos de Anistia e abertura política, encerrando suas esperanças no mandato de Tancredo Neves. Ao analisar o destino dos personagens adultos (como Gabriela, Ruth e Caco), a peça contrasta aqueles que lutam para resgatar as memórias dos anos de chumbo (como Ana) com aqueles que abraçam as conquistas individuais. Qual mensagem a peça busca transmitir ao mostrar essas escolhas divergentes na vida adulta dos amigos?
O destino das personagens, suas histórias pessoais, divergências e escolhas fazem parte da complexidade da narrativa. A peça, ao final, é cheia de esperança, uma criança nasce e é embalada por uma poesia. A reparação vem pela poesia que nos salva. É a função da poesia, nos salvar da vida, nem que seja a nossa própria vida e a vida criativa.

O percurso distinto das personagens demonstra que as forças responsáveis pelo golpe militar permanecem presentes tanto nos indivíduos quanto na sociedade. A incoerência está presente na hipocrisia que as crianças da peça denunciaram, e os paradoxos nos adultos permanecem como desafios a serem enfrentados para não bailar na curva novamente.

