O mundo olha nesta terça-feira (7 de outubro) para a marca trágica de dois anos de genocídio na Faixa de Gaza. Violências de todo o tipo, ao lado de ações que inviabilizam a vida no território palestino como a fome e a sede induzidas, os corpos quebrados e fraturados que não têm assistência médica de pessoas condenadas ao confinamento em um local onde a morte pode acontecer a qualquer segundo se tornaram a rotina diária para a impotente comunidade internacional que não conseguiu brecar Israel.
Mas todos os elementos usados pelos militares israelenses em Gaza já vinham sendo empregados pelas forças de segurança de Israel nos porões do sistema prisional do país, onde são enviados palestinos considerados resistência à ocupação que é considerada ilegal pela ONU. Tortura física e psicológica, médicos torturadores, dieta de matar de fome, falta de água ou disponível apenas em privadas, para humilhar, ausência de luz solar, informação do mundo exterior e impossibilidade de direito a defesa são alguns dos elementos disponibilizados pelos israelenses para os palestinos presos.
O Brasil de Fato ouviu um deles, identificado pelo nome fictício de Hassan para proteger a identidade do jovem que passou cinco anos nos porões da Al-Moskobiya, prisão famosa pelos maus-tratos a palestinos, incluindo crianças. Abaixo, um raro vislumbre da realidade vivida por cerca de 10 mil conterrâneos de Hassan, que classifica a experiência como “a definição real do inferno”:
Brasil de Fato: O que pode nos contar sobre o tempo em que esteve preso?
Hassan: Fui preso duas vezes. Uma em 2017 e outra em 2019. Eu cumpri quase 5 anos de prisão. A última vez foi de 2019 a 2023. Fui solto em meados de 2023. E eu me mudei. Estive detido em muitas prisões. A principal é a Al-Moskobiya, que é o centro de interrogatório. Fica em Jerusalém. Então, é bom e ruim. É ruim porque é um centro de interrogatório que fica no subsolo, sem sol. As celas são como túmulos e sempre há tortura, tortura física e psicológica. Mas a parte boa desse lugar é que você está perto de Jerusalém, da cidade velha. Nós, como palestinos, não temos acesso. Nós não temos o direito, ou melhor, não é que não tenhamos o direito. Nós temos o direito, mas não temos acesso ou permissão para visitar Jerusalém. Então, pelo menos nós visitamos enquanto estamos algemados e vendados. Pelo menos é algo, significa algo para nós.
Você sofreu alguma tortura?
Eu fui submetido à tortura e a interrogatórios por mais de três meses. E sim, fui torturado fisicamente pelo Shin bet, a inteligência israelense. Durante esse tempo, fui interrogado. Terminei o interrogatório, fui para a prisão e fui sentenciado em um tribunal militar que, do nosso ponto de vista como palestinos, é um tribunal ilegal, porque não há um parlamento que lhes dê leis para operar.
Este tribunal militar faz parte da ocupação. O juiz não usa um terno preto, ele usa um colete militar. A taxa de condenações neste tribunal militar é de 99,7%. Então, você é culpado antes de ir para o tribunal. Fui condenado por muitas acusações, principalmente pelo meu papel de oposição e organização contra a ocupação, e fui sentenciado a quatro anos de prisão.
Durante esse tempo, conheci milhares de prisioneiros políticos palestinos que buscam lutar contra o sistema prisional e também sobreviver. Muitas pessoas lá tentam se exercitar, praticar esportes e coisas do tipo. Muitos prisioneiros políticos agora são escritores e têm um sistema educacional de autoaprendizagem.
Com o tempo, após greves de fome e anos de luta contra o sistema prisional, os prisioneiros conseguiram conquistar alguns direitos. Um deles é TV, rádio, o direito de receber visitas da família e o direito a uma melhor qualidade e quantidade de comida.
Com o tempo, os prisioneiros políticos conseguiram transformar a prisão de um lugar que poderia te suprimir para um lugar que poderia te motivar e lhe tornar mais forte e bem-educado. Tornou-se uma escola política revolucionária. Então, eu acho que o que torna o movimento dos prisioneiros políticos palestinos incrível é a conexão forte que eles têm uns com os outros, a solidariedade e a relação militante que eles têm para sobreviver àquele tempo.
Infelizmente, depois de 7 de outubro, tudo que mencionei, como os direitos que os prisioneiros conquistaram através da luta, de greves de fome e de muitos mártires que foram mortos nesse processo, todos esses direitos desapareceram ou se esvaíram. Agora, cada prisioneiro recebe 500 calorias de comida por dia. Apenas isso.
Apenas 500 calorias por dia? A recomendação da OMS é de 2,4 mil…
Sim. Se você vir as fotos deles, como eles entram e como saem, é como a definição real do inferno. Se você quiser imaginar o inferno como um ser humano, apenas olhe para as prisões israelenses. Se você quiser imaginar o sofrimento de qualquer ser humano, apenas olhe para os prisioneiros palestinos.
Agora, muitos dos prisioneiros estão sendo torturados diariamente sem motivo. Não é parte do interrogatório. É apenas parte do desejo deles de quebrar as pessoas. Eles querem quebrar suas almas e sua vontade para que não se oponham à ocupação de forma alguma. Muitos deles têm as costelas quebradas, o nariz quebrado, as mãos quebradas. Muitos, muitos prisioneiros.
Então, depois deste 7 de outubro, essa ideia de organização dos prisioneiros…
Todos os líderes dos prisioneiros políticos das facções são torturados e enviados para o confinamento solitário. Eles não veem nenhum ser humano por anos, estão apenas sozinhos em suas celas sendo torturados todos os dias. E há uma ameaça existencial em suas vidas por causa da forma como os guardas prisionais os tratam diariamente.
Eles os espancam todos os dias. Não lhes fornecem comida nem cuidados de saúde. Há muitos testemunhos do Mascobia, que é o centro de interrogatório em Jerusalém, de que os prisioneiros foram forçados a beber água do vaso sanitário. Eles estão tentando nos humilhar de todas as formas e por todos os meios. Há prisioneiros que foram ao tribunal e você pode ver pelos seus lábios que eles estão com sede há dias, que não beberam água porque são forçados a beber água do vaso sanitário. Isso mostra o quão sádico é o sistema judicial prisional de Israel.
Esses prisioneiros, eles sabem sobre essas trocas entre o Hamas e o governo de Israel?
Não, eles não sabem das notícias, prisioneiros que foram libertados não sabiam que seriam libertados. Os guardas prisionais disseram a eles que os transfeririam da prisão B para a prisão A; não disseram que os libertariam e os mantiveram na incerteza até o último segundo.
Os prisioneiros não têm defesa, os advogados não podem visitá-los, com algumas exceções aqui e ali. A Cruz Vermelha não pode visitá-los. Suas famílias não podem visitá-los; a última vez que viram seus filhos foi anos atrás, não há rádio ou TV. A única maneira de receber notícias é através dos guardas. Essa é a única maneira, é terrível.
Há prisioneiros lá desde 1998 e um deles me disse algo como: ‘Eu estava na prisão antes da queda do Muro de Berlim, ou antes do colapso da União Soviética e ainda estou na prisão. Olhe o que aconteceu no mundo.’ Há prisioneiros políticos com sentenças altas, como prisão perpétua ou 25, 30 anos. A maioria deles está na prisão há no mínimo 20 anos. Alguns há 25, outros 30, 35 anos.
Como é a vida deles depois de serem libertados?
Dos 600 que foram libertados, 300 foram soltos na Cisjordânia e estão basicamente vivendo em uma situação onde qualquer coisa que façam, mesmo algo social, pode levá-los a uma nova prisão. Alguns que cumpriram 25 anos de prisão foram libertos por dois ou três meses e depois foram presos novamente.
Na Cisjordânia?
Sim, na Cisjordânia. E alguns foram massacrados, bombardeados e mortos pelo regime israelense (após sair da prisão). Outros foram exilados para fora da Palestina. Eles foram primeiro para o Egito.
Eles estão no exílio por ordem de Israel ou por vontade própria? Eles escolheram partir?
Não, Israel decidiu. Não foram eles. Eles não escolheram o exílio. Todos eles queriam ficar onde viviam com suas famílias, porque agora eles estão no Egito e os sionistas israelenses não permitiram que suas famílias deixassem a Cisjordânia para encontrá-los. Então, eles estão vivendo sozinhos no Egito agora.
No Egito, eles estão vivendo em um hotel fornecido pela inteligência egípcia, sob a justificativa de que a inteligência quer proteger os prisioneiros políticos de qualquer ameaça. Então, eles vivem em um hotel, basicamente em uma prisão a céu aberto, porque não podem sair do hotel exceto talvez por 1 hora por semana.
Só com autorização da ordem egípcia?
Eles precisam de permissão para sair. Dos 300, aproximadamente 150 deixaram o Egito para diferentes países, como 50 para a Turquia, 30 para a Argélia, 20 para a Espanha. E sim, eles estão vivendo no Egito agora em condições muito difíceis. Não podem sair do hotel e não podem continuar suas vidas e se reunir com suas famílias. Depois de 25 anos de prisão, eles ainda têm que sofrer mais e mais vivendo em uma prisão.